acordei e o dia tinha se feito azul petróleo. chico tinha levado o barco até a baía, sem me avisar; sem me deixar pegar no mastro, que eu dormisse para descansar, e se esquecesse um pouco que estava sendo ninada por aquela maré. como se fosse algum tipo de paternagem, levava ele mesmo o pradianti. a maré estava muito cheia, muito cheia. e o resto todo, azul petróleo. dos paus fincados na areia, do futebol dos homens, só se via metade. e mais quase nada. o mar tinha tomado toda a areia, egoísta, e pouco, muito pouco se via de chão, além do asfalto, que já era o lado de fora. o tempo novo se anunciava ali, um tempo que já dentro de mim navegava, mas que estava ali, a cores. pedro já tinha desembarcado muito antes e chico chegou sorrateiro, como tivesse ali também este olho-corpo, mareado. no mesmo tempo que eu naquele convés, era como se a presença de chico tivesse uma realidade que me afagasse a alma. isso porque chico era um sonhador. e esta linhagem eu nunca que poderia negar. ainda é cedo, amor, me disse com uma voz de amanhecer, muito terna e muito grave. ainda não é tempo de partir. ainda tem rosa na idade dos seus olhos morenos. por que este medo de os pôr à vista? serão muitas tempestades ainda, minha filha, não se intimide com elas. esqueça essa ideia de patrimônio, de herança fincada na terra. nem de uma memória outra, um gesto antecipado de uma educação sentimental. somos um povo do mar. sabemos da transitoriedade. ainda é cedo, amor. não parta antes mesmo de ter partido. você está aqui. agora.
eu encarei os olhos de chico durante muito tempo como se quisesse entender, como se buscando esta força de seu otimismo incorrigível. não desista do amor. pare de ficar alisando este espinho. e eu perguntei a razão de me dizer assim, tão excessivo, aquilo tudo que dizia justamente quando estava pronto para partir, sem aviso prévio. porque o mar levou jorge, rosa. jorge morreu no mar, ele disse. toda a gente já sabe, lá no cais. e achei que era de direito esse teu adeus, em terra firme.
turvou o dia, nos olhos, no corpo inteiro.
e aquele azul petróleo, dentro, dentro e enchendo e esvaziando e transbordando dentro de mim muitas marés. exigi que chico partisse, eu mesmo pilotando o pradianti até o deck. exigi seu silêncio, contra qualquer dado de realidade. e novamente parti, porque estava tarde, porque não cheguei a tempo de dissuadir jorge da sina comum dos canoeiros. que eu era egoísta como aquele mar, cobrindo a terra firme de ilusão, sempre certa, meio nuvem, sonhadora demais, de que pudesse forjar o tempo, de que pudesse manipulá-lo quando fosse urgente o meu desejo.
mentira.
chorei primeiro.
e disse
pai, me leve daqui
ele levou
uma hora e outra ele repetiu: ainda é cedo, amor.
já é tarde. preciso ir. me beijou e partiu.
faltava só mais um tiquinho e eu empurrei o barco, sozinha, e consegui cair em alto mar. nunca mais voltaria. eu também fugi para aiocá.
a radiola, como uma narradora, assobiava: é doce morrer no mar.
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