ele estava deprimido por conta de toda a tragédia. sua cidade devastada por aquela enchente, o país inteiro tentando ajudar os desabrigados e ele ali, pensativo e silencioso, quando o dia perdeu a claridade e ele não foi capaz de se levantar para acender a luz. naquela tarde, que já se fazia noite, ele não tinha certeza se aquele grande buraco dentro de si dizia apenas sobre chuvas e enchentes. ou talvez ele também tivesse sido inundado, dentro. por um momento aquele sentimento que ele havia evitado desde o início do ano, desde o início de tudo, voltou. ele voltou a pensar nela, na última vez que ela saiu correndo da sua vida, como sempre fazia, no ciclo que nunca mais se refez, e todos os arrependimentos, os ressentimentos. a enchente era dentro. e dentro ali inundava seu mundo forçadamente estável e tranquilo, a bolha que não se permitia sair para enfrentar fantasmas no escuro. aquele dia, em frente a janela, ele desejou que a chuva pudesse trazê-la de volta, de novo.
*
ela finalmente viu a neve. quando não esperava mais, ela viu aquilo que desejava há meses. e foi vendo a cidade toda ficando coberta por aqueles flocos brancos, que caiam feito pluma, com a delicadeza que não tinha uma tempestade. ela assistia aquela imagem por horas, plantada na janela de seu vigésimo andar, dentro daquilo que lhe parecia o mais acolhedor dos mundos, feito um ventre. e que como se a vida toda pudesse caber nos limites daquele quartinho, e a vastidão do desejo não precisasse mais de vazão. todo o sentimento caberia ali naquelas arestas e por isso estava fria como aquela neve, silenciosa como aquele pouso, feliz como se algo tivesse sido consumado naquele sonho de ver a neve. ela lembrou dele mais uma vez das tantas que o fizera naquela estação. talvez pela última vez ela se lembrou de tudo. porque sabia que ela estava enterrando ele com aquela neve, pra sempre, como foi. 

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