tintas s/memória
para liana f
no meio das pastas do congresso, eu achei, tempos depois, um dossiê laranja. um postal escorreu da folha transparente e começava com ela dizendo que precisava ir embora. está ficando tarde e não faz mais sentido ficar sentada aqui. e eu me lembrei do projeto da casa, do nome dos filhos, da ficção afetiva que criamos. quase uma dramaturgia. ela reclamava que o castelo tinha ficado lindo, mas que sempre soubemos que o mar levaria embora... porque era assim a ficção.
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está amanhecendo e eu também estou sentada, como ela disse, perto de uma linha laranja. mas, ao contrário dela, não há castelo, há ruínas. e nem há chuva. e nem cigarras. e dormiria facilmente, não há insônia. ela sempre dizia isso: que o barulho das cigarras não deixavam ela dormir. parece que tem uma bolha morando dentro de mim. foi exatamente assim que ela falou. bolha de sabão? talvez sim. releio várias vezes o que ela diz sobre alguém dentro parecendo gritar. mesmo serena como estou posso sentir o que é. penso seriamente como o que nos uniu foi isso,
todos nós, naquela juventude de chinelo de dedo roçando o barro vermelho.
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não me cabe dentro dessa mala velha que você tanto gosta
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quero dizer agora que não cabe mais sentimental na nova onda que tomou nossa juventude latina-americana e a sensibilidade é uma bobagem. e que ela esteve sempre coberta de razão e que quero roubar as frases dela para entregar ao mar. uma carta feito barquinho de papel para ser levada com os castelos de areia. e eu sei disso e me dói, ela não para. parece gritar, mesmo suave, das letras de forma do papel: não me cabe dentro dessa mala velha que você tanto gosta.
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por mais que você tente arrumar tudo direitinho, a mala não fecha, eu concordo. é uma carta de adeus e tantas malas outras já se amontoam no corredor, quero dizer a ela. e que as cartas estão todas a salvo no dossiê doce-é. você devolveu tudo antes de queimar, se lembra? o que aconteceu com nós todos, menina-poeta, indago lembrando da foto da turma de 1998 pregada no quadro de avisos. ela desenhou uma linha laranja no chão do quarto e nunca saiu. ela me dizia que era a linha da moral, mas me confunde, hoje, a palavra. certo e errado, querer e não querer, real e ficção... eu tinha cimentado um esquecimento naquelas cartas, naqueles desenhos, naquela fabulação da vida. e eu ia dizer a ele, dali por diante, olhe, eu não vou voltar atrás. eu não vou voltar a viver com a moral que separa os lados em dois. *
não quero sair da sua vida. não quero que você saia da minha. mas sinto que devo sair da nossa
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ela disse que não era adeus como realmente não foi. ela disse que era um sorriso aquele postal. um sorriso sentimental. sorrio toda vez que leio a última palavra, porque é a cara dela. não assinou nem datou nem carimbo era registro de história. porque era ficção, me lembro agora. e no agora uma caixinha cabia dentro da outra e não tinha mais problemas com malas - estavam todas no corredor - e eu também não queria mais caber onde não me coubesse.
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