sem cais s/azul

chico reaparece, depois de um longo sumiço. está aborrecido com qualquer coisa da vida e se apoquenta de me ver em alto mar. aumenta o tom de voz, me tira do saveiro e diz com dureza que prefere que eu volte para a areia, que eu cultive âncoras, que eu tenha filhos. permaneço silenciosa como acordei. se ele que me ensinou  a viver de pradianti, a amar os canoeiros, que talvez não se lembre disso mesmo, que me ensinou no corpo, no gesto, sem dizer uma palavra sequer e eu tenho vontade de botar texto, dizer, não, meu pai, me deixe em alto mar, pois todo cais é uma saudade.
talvez ele esteja muito velho para tantas aventuras de amor no violão e me quer inteira fincada na terra, por isso continua dizendo, já como se conversasse sozinho, você precisa dessa segurança, rosa, você precisa dessa estabilidade. respondo comigo mesma mas a vida é meio água, meu pai, e aí me confundo se é essa mesmo a metáfora. me confundo muito e olhando pra chico às vezes duvido que ele se lembre que é um marítimo. só por uns instantes. isso dele virar outro tem hora. talvez porque sinta dor de ser o que é. isso que sente todas as gentes. por isso inventa, inventa, fica inventando imagens para mim. penso depois de muito tempo ainda posso ainda posso ainda posso ir bem mais. eu sei desse cansaço, meu pai, não digo. devolvo qualquer rispidez. que eu também tenho as minhas dores. as minhas perdas. o meu amor sem cais. os braços de jorge que nunca mais. as mil lágrimas secas no que restou de sal.
encaro-o docemente, logo após, que vejo ali um homem que amou demais. aquele velho sonhador.
tantas imagens simultâneas e são novos os olhos que lhe aponto, como se aquelas temporadas de mar, desde que deixei a beira, tivessem colocado ciscos no meu olhar.

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